Pesquisa personalizada

domingo, 30 de agosto de 2009

Moços que parecem homens e nunca forma meninos

"(...) O telhal está silencioso e deserto, e o vento zune no caniço dos esteiros, negros como breu. No céu, nem uma estrela. As luzes mortiças dos saveiros, ao longe, adensam a noite.
Mas o Gineto não tem medo. Já por duas vezes que atravessou o esteiro, com o lodo pelos joelhos, para ir roubar carvão da Fábrica Grande. No Largo da Vila já há armações para a Feira - e ele quer voltar a ver Rosete na barraca de tiro; quer comprar-lhe beijos com dinheiro que no telhal não chegou a juntar.
Por isso, atravessa de novo o esteiro, agora cheio de água; depois rasteja e corre para junto do carvão, com que vai enchendo a saca, precipitadamente, atento aos ruídos e focos de luz. As máquinas, porém, abafam os passos dos guardas, confundidos com as trevas. Quando esboça a fuga, é tarde de mais, perante homens lestos e potentes como o Rex - o canzarrão da Quinta Alta.
Preso e manietado, dorme no posto da Guarda Republicana, depois do interrogatório sumário. Dorme?... Não: Congemina fugas e pensa que os companheiros o virão salvar, como naquela noite de temporal em que o Boa Sorte naufragou. Não permitirão que o chefe permaneça ali, longe das ruas em que se joga e brinca, longe dos pomares carregadinhos de frutos. Ele tem, planos maravilhosos para a quadrilha, que , até então, nada mais fizera do que roubar algumas sacas de laranjas, durante o Inverno que passou.
Mas os amigos não vêm, e a mãe, com as suas lágrimas, não consegue anular o depoimento dos guardas, dos caseiros e do Cabo do Mar, que tem uma cicatriz indelével no braço, feita pelo canivete do Gineto...
Rolam dias iguais a todos os dias; o Outono chega, cavalgando o vento. E Gineto mantém a mesma fé de quando entrou na prisão.
Através da cela, ouve um tropel de cavalos e alarido de muito povo, a entrecortar um sussurro distante, confuso, de música e tiros e vozes... É a Feira. Gineto anima-se, crente de que os companheiros virão buscá-lo neste dia de festa, trazendo Rosete com eles. Encosta a face às grades, espera o regresso à vida livre.
Uma voz canta, mesmo por baixo da janela, uma canção que ele ouviu, certa tarde, no alto do Mirante. Ele grita: - Gaitinhas! Tou aqui, Gaitinhas!
Mas a voz afasta-se. Gaitinhas-cantor vai com saguí correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E, quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais - moços que parecem homens e nunca forma meninos."

Excerto de "Esteiros" de Soeiro Pereira Gomes
Desenho de Álvaro Cunhal

Sem comentários: